quarta-feira, 4 de novembro de 2009

escolhas

          A chuva insistente molhava suas canelas através da calça fina e o risco que esses dias chuvosos trazem de desestabilizar tudo fez com que escolhesse pegar um ônibus para deixar o Jardim Botânico - se a escolha fosse sua, não deixaria nunca o bairro, seus pequenos prédios, as normalistas jogando conversa fora com suas meias três quartos na praça, o som insistente do piano que vinha buscá-la na calçada: seria um velho músico? um adolescente aprendendo a tocar o instrumento? um vinil antigo tocando em uma vitrola de brechó, a sala apagada, a luz do abajur aconchegando o quarto? provavelmente apenas um cd daqueles que vêm de brinde em revistas de fofoca.
        Tinha logo de pegar o ônibus, a chuva apertava e um vento frio gelava seu nariz que, grande, se prolongava para além da gola alta da rara camisa de lã. A realidade era sempre menos bonita e o piano deveria ficar para trás. Era assim. E vinham os ônibus, um seguido do outro: azuis, amarelos, brancos, rodas grandes espirrando poça nos passantes. Os guarda-chuvas se embolavam nas calçadas estreitas. A realidade sempre era menos bonita. Era sim. Quando se percebeu, deu conta de que qualquer um serviria, precisava chegar apenas ao próximo bairro, mas preferiu escolher. “Muito cheio”. “Não, não, se fosse para pegar este eu teria entrado no outro, menos popular”. “Ar-condicionado a R$ 2,20, neste frio... prefiro esperar mais um pouco.” E assim ela brincava de escolher o ônibus, ocupando com divagações a única parte de seu dia em que não precisaria fazer escolhas. Acabou se cansando e pegou qualquer um. Era sempre assim.
          Entrou no veículo. Abafado. Percebeu as janelas fechadas, observou os lugares vazios. Os outros poucos lugares preenchidos levavam dois turistas, uma mulher negra, elegante, uma mocinha com jeito de secretária de consultório médico e um casal de velhos. No último assento havia ainda uma menina, sozinha, a pele queimada de sol, mesmo aparentando já uns treze anos, levava o polegar à boca e uma boneca velha às mãos. Até aquele momento o dia lhe ia fácil, não havia dúvida: sentaria em um dos tantos lugares vazios. Mas a vista livre da roleta (sempre imaginava como devia ser interessante o trabalho do trocador: passar o dia observando as pessoas, diversas; seus rostos, tensão, ansiedade, alívio; sempre do alto de sua cadeira, guardião do dinheiro. Trocador. Sua psicologia tão instável só poderia levá-la a admirar uma profissão que se ocupava de trocar coisas, ainda que pequenas partes desta coisa tão espaçosa que é o dinheiro.), a visão total do ônibus fez com que pensasse se a escolha deveria ser tão óbvia: por que preferir sempre a solidão? O banco vazio sem dúvida seria mais confortável, mas e a companhia do outro? Não seria jamais confortável?
        Sentou-se no banco vazio.
      O guarda-chuva no chão, as mãos cruzadas à frente do corpo, a cabeça recostada na janela. Acompanhava o mundo passando do lado de fora, a temperatura era incomum e as pessoas na rua pareciam não estar preparadas para a sua chegada: algumas mulheres levavam suas assíduas sandálias ordinárias de plástico, que a faziam recordar de quando era menina e se equilibrava em latas de alumínio, para não sujar os sapatos: as canelas finas quase não se integravam aos pés, tão largos com o novo adereço; as adolescentes seguiam com seus pesados casacos de moletom e seus também sempre presentes shortinhos jeans; o menino de rua parecia embrulhado em um lençol, cuja estampa de flores, suave de tão desbotada, permitiu-a prever uma senhora, momentos antes, buscando nas gavetas “aquele lençol antigo, que ganhamos no casamento, para esquentar o menino que fica na porta da padaria”. Era assim o caminho.
         Mais duas paradas e o ônibus começou a encher. À sua frente, ocupou o assento livre um rapaz moreno, cabelos molhados, cachos pequenos, definidos, não demorou muito e não resistiu, recostando sua cabeça no vidro; estava frio, chovia, a preguiça cinzenta era contagiante. Foi quando ela percebeu que homem dormia, sua cabeça ia e vinha, conforme as freadas, chegava a incomodar o carteiro que sentou ao lado; ainda pôde notar que cada movimento de sua cabeça deixava marcada a janela, uma espécie de gosma branca ia selando o vidro, que provavelmente levaria dias para ser limpo. E a cada movimento mais brusco do motorista, a gosma formava um desenho na superfície já imunda: no início eram apenas riscos brancos, mas o vaivém da cabeça, que quase despencava, formava já um círculo, desconexo, mas cada vez maior. O creme usado para deixar os cachos mais soltos e desagruvinhar a imagem, deixava rastro. Nem todas as escolhas davam certo.
          Era assim com ela também.
          Uma escolha e tudo se tornava diferente, no início eram apenas pequenas alterações, mas a vida ia e voltava e as decisões faziam-se necessárias; o que inicialmente era somente uma sombra na janela poderia nublar a visão se tomasse todo o vidro. E o mundo ficaria lá fora.
          Ela, sozinha dentro de si, tentaria não se sujar.
          A vida tornava-se, dia a dia, mais confusa, como os guarda-chuvas nas calçadas, as poças no meio do caminho, o menino e seu lençol na calçada, o armário da dona-de-casa.
          Bastaria subir na lata e passar por cima?

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