quarta-feira, 4 de novembro de 2009

dois rios

          Foi no Catete, em meio a calçadas sujas e repletas, gente indo e vindo, ambulantes e lanchonetes, e às vezes sob o refresco das palmeiras do Museu da República, que Cristina cresceu. Nos anos de faculdade até arriscou uns dias no Humaitá, dividindo sala e sonhos com uma amiga, mas a recém-formatura e a ausência de uma atividade mais estável a levaram à casa da avó, uma senhora que começava a lidar com pequenas e constantes questões de saúde, mas era tranqüila o suficiente para garantir uma rotina sem grandes desafios.
         O dia-a-dia no bairro também não oferecia grandes experiências, a maneira como reorganizara sua vida proporcionava-lhe um conforto animador. A moça dava aulas de português para estrangeiros pela manhã, quando pegava o metrô até o centro da cidade, e isso lhe rendia um bom dinheiro no fim do mês e até a deixava satisfeita, já que o esforço era quase nenhum e os alunos - executivos recém-chegados ao Brasil - costumavam tratá-la com respeito e, dentro do possível, certa cordialidade. Como as empresas costumavam reservá-la apenas até o horário de almoço, Cristina gostaria de aproveitar as tardes livres para estudar, ler os tantos clássicos que se empoeiravam na estante, assistir a uns filmes europeus, mas na maioria das vezes ia mesmo ao supermercado, levar a avó ao médico (era a única recompensa que a velhinha lhe exigia) ou resolver algumas questões do trabalho.
         Em uma dessas tardes, quando voltava das compras, foi surpreendida por um rapaz que lhe pedia fraldas para a filha recém-nascida. Não tenho. Mas não é dinheiro, não. Já disse que não tenho. Pô, tia, vai comigo na farmácia, ela tá precisando. Que eu saiba, fralda se compra com dinheiro e se eu não tenho dinheiro, não tem fralda.
        A paciência de Cristina era uma de suas características mais claras, era tanta que gerava alguma impaciência nos outros, mas se havia uma coisa com a qual ela não perdia tempo era com mazela social. A moça achava que já tinha muitos problemas e queria mesmo é que a prefeitura tirasse da calçada do seu prédio aquele bando de gente desocupada que alterava o seu caminho. Mas naquele dia o rosto do pedinte, com o perfil todo queimado, não saiu de sua mente enquanto guardava as mercadorias na pequena despensa que o pai organizara para a avó no quartinho dos fundos.
         Não havia se arrependido de não dividir seu dinheiro com ele, ou de não acreditar no olhar reticente, mas que a encarava com coragem; o que incomodava Cristina era a certeza de que conhecia o rapaz.
         Alguns dias se passaram e a cena do supermercado, que a acompanhou em algumas viagens de metrô e sanduíches no café da esquina, acabou desaparecendo . A vida, então, retomou o ritmo compassado dos compromissos e tarefas que precisava cumprir. A chegada de novos alunos, o retorno de outros poucos aos seus países de origem, a possibilidade de assumir umas turmas na escola britânica, agora era isso o que ocupava os pensamentos da jovem em suas andanças pelo Rio de Janeiro.
         A tarde estava abafada e Cristina não via a hora de tomar um banho quando avistou o rapaz sentado nas escadas do metrô, com uma criança no colo. No dia seguinte, o sol não incomodava tanto, mas o rapaz continuava por perto, desta vez parado na esquina, acompanhado de uns dois ou três como ele. E assim sua presença se tornava constante na rotina de Cristina quando ela, enfim, pôde reconhecê-lo. Lembrou de um Natal quando, de dentro do carro, vira um grupo de meninos de rua desembrulhando uma bicicleta no abandono do muro de uma escola vazia. Já naqueles dias de infância a data não representava muita coisa para ela, mas chamou atenção como tantos meninos estavam tão felizes com um único presente enquanto, voltando da casa dos avós, ela e o irmão se apertavam no banco repleto de brinquedos e daquilo que sobrara da sempre exagerada ceia da família.
           A risada do rapaz poderia ser a mesma, à recordação de Cristina não restara tantos detalhes, era o rosto queimado que a fizera recordar do garoto que quase diariamente passava por ela; a menina ia para a escola, ele estava sempre no mesmo lugar. Naquele momento a moça não pôde se esconder das reflexões que rapidamente a surpreendiam, várias, fortes. Cristina não sabia ao certo o que sentia, era quase uma emoção, um encontro entre passado e presente, mas enquanto ela vivia sua vida com a dignidade que o diploma recém-adquirido garantia, o rapaz representava um tempo que não fora superado.
          A vida do jovem que passava seus dias na rua, entre colchões malcheirosos, garrafas de cola, alguns trocados, sujeira, fome, vazio, a vida do jovem estava interrompida, o tempo não passara para ele. Se Cristina fazia planos de um dia se casar com o namorado advogado e ter filhos, o rapaz já levava seu rebento nos braços, desta vez uma menina, mas igualmente interrompida, como o pai. Chegava a doer imaginar como duas vidas aconteciam tão próximas e distantes ao mesmo tempo, doía a indiferença que sustentara até aquele dia.
         Cristina voltava para a casa que mantinha tão agradável, levava livros na mochila, sonhos no peito, mas o que restara ao rapaz que crescera junto com ela? Teria ele crescido? O que os afastava de verdade? Seria tão grande a distância que os mantinha em mundos tão diferentes, lado a lado? E a bicicleta dele? O que fizera dela? As que tivera, Cristina guardava todas na memória: a vermelha de rodinhas que ganhara do pai; a branca, com a qual já mais velha aprendera a andar na Lagoa, em meio a tantas outras crianças, seus patins, patinetes e afins. O que acontecera com a bicicleta que o então menino ganhara e dividira com sua turma pelas ruas do Catete? O que restara da infância do menino no Catete?
A moça recordava seus dias de criança quadro a quadro, mas onde estivera o menino de rua enquanto ela comemorava seus aniversários, suas aprovações, recebia aplausos por suas apresentações de balé? Onde estivera o adolescente de rosto queimado quando ela sentira vergonha pela primeia espinha que lhe surgiu no meio da testa e virou alvo da implicância dos colegas da escola? O que recebera o garoto enquanto ela crescia com beijos e abraços dos pais e presentes cada vez mais sofisticados de natal, ano-novo, aniversário, formatura? Estivera ele presente em sua própria vida?
         Naquela noite, a moça não conseguiu dormir. Mas só naquela noite. O que os fazia igualmente humanos não foi suficiente para resgatar o que de humano havia em Cristina. Os caminhos já estavam há muito separados, a vida precisava seguir.

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